Perseu Abramo e a ética no jornalismo<font color=0093dd><em><strong>*</strong></em></font>
Conheci Perseu Abramo em 1957 na Redacção de «O Estado de S. Paulo». Eu chegava de Portugal para, no exílio, retomar numa sociedade desconhecida, a carreira de jornalista, após um conflito cujo desfecho fora a minha demissão e a de uma dezena de redactores do «Diário Ilustrado» onde fora redactor-chefe. Perseu, sobrinho de Cláudio Abramo, estudava Sociologia na USP e desempenhava tarefas de editor no «Estadão». Trabalhava muito e na época não assinava artigos.
A relação que mantivemos nunca foi de intimidade. Mas cimentámos uma dessas amizades construídas no respeito mútuo que prescindem de longas conversas. Numa Redacção efervescente na qual a pequena política era o alimento quotidiano do colectivo de jornalistas, Perseu participava pouco dos debates sobre temas frívolos e sobre o binómio antinómico revolução/contra-revolução. Já então a política era para ele coisa séria e a revolução aparecia-lhe como um infinito absoluto, que conferia significado à aventura humana, tal como a definiu o russo Ioffé após Outubro de 1917.
Em situações difíceis, inseparáveis do meu envolvimento nas lutas do povo brasileiro, Perseu manifestou-me sempre uma solidaridedade calorosa. Isso ocorreu em 1961, na crise posterior à renúncia de Jânio Quadros, quando suspendi a minha actividade no «Estado», por considerar que o apoio à Junta dos generais facciosos me colocava, como editorialista, numa posição eticamente inaceitável.
Num livro que acaba de ser lançado em Portugal evoco esse episódio, assim como outros ocorridos após o Ato Institucional n.º 5, que me confrontaram como jornalista e revolucionário com opções decisivas em defesa da dignidade. Recordo que procurei Perseu Abramo na redacção da «Folha de S. Paulo» para lhe pedir a sua assinatura num documento de solidariedade aos professores da Faculdade de Filosofia cassados pela ditadura. Ele, sereno, firmou sem hesitar, consciente do risco.
Raramente nos encontrávamos naqueles tempos difíceis. Vidas diferentes distanciaram-nos. Mas quando, ocasionalmente, surgia a oportunidade de conversarmos e procedíamos a um balanço do que ia pelo mundo e pelo Brasil convergíamos no fundamental. Perseu não seguira o rumo de muitos companheiros que, ao iniciarem carreiras académicas, tinham na prática renunciado ao combate político, substituindo-o por uma intervenção contraditória no domínio das ideias, que fazia deles cidadãos acomodados, meros simuladores de cultura. A Sociologia permitira-lhe aprofundar o conhecimento da vida, dos homens, dos povos, e, em primeiro lugar, do seu. Foi para ele um instrumento de pensamento e de acção; e não porta para conquista de cargos, nunca um fim.
A Revolução Portuguesa aumentou o nosso distanciamento. Mas do outro lado do Atlântico, de longe, acompanhei-lhe a trajectória de cidadão exemplar, de combatente pela liberdade, contra a ditadura. Do seu eticismo tinha notícias sobretudo através de Florestan Fernandes, o mais íntimo dos amigos que fiz nos meus anos brasileiros.
Somente uma vez revi Perseu, quando nos cruzamos no aeroporto de Guarulhos em 1996. Eu voltava ao Brasil após anos de ausência. Ele era então um dirigente destacado do PT. Combinamos um encontro, mas falhou.
Relembro o pormenor para sublinhar que o Perseu Abramo que as actuais gerações admiram, o dirigente politico que marcou o PT na melhor fase da sua transformação no grande partido dos trabalhadores brasileiros foi de certa maneira um desconhecido para mim, embora a imagem que dele guardo seja a do jovem companheiro do velho «Estadão» que ali aprendi a estimar pelo seu talento e pela sua defesa da ética no jornalismo e na política.
O jornalismo de opinião
Creio que ao associar o nome de Perseu a esta palestra a melhor maneira de expressar a minha admiração por ele será falar um pouco sobre o jornalismo de opinião, tal como o contemplo e sinto hoje, em convite à reflexão sobre facetas antagónicas.
Chomsky, Ramonet e o canadense Chossudovsky, em livros e artigos publicados no Brasil, têm dado uma importante contribuição para o desmascaramento da engrenagem que hoje exerce a nível mundial um controle hegemónico sobre os media.
Um punhado de transnacionais cujos interesses estão intimamente ligados ao sistema de poder dos EUA que ameaça a humanidade é responsável por uma situação paradoxal. Nunca antes a quantidade de informação disponível foi tão ampla e diversificada. Mas em época alguma a desinformação atingiu níveis tão alarmantes. A engrenagem montada utiliza a noticia, a análise, o texto de opinião com o objectivo de desinformar.
Perseu Abramo não viveu o suficiente para assistir ao agravamento do processo mundial de perversão desinformativa contra o qual lutou. A rede ampliou extraordinariamente as consequências desse fenómeno. Mas as gerações que no Brasil sofreram os anos da ditadura militar não esqueceram a atmosfera de contornos kafkianos em que os jornalistas então trabalharam.
Obviamente, o jornalismo não pode ser isolado do meio social. Terá no Brasil de ser diferente do que é na Tailândia ou no Irão. Mas não é somente a realidade envolvente que pesa decisivamente nos diferentes tipos de jornalismo.
Seja ele informativo ou de opinião, o jornalismo não é uma actividade abstracta. Numa sociedade de classes está sempre vinculado a concepções políticas e sociais. De maneira mais ou menos transparente exprime e defende os interesses de uma classe social.
A objectividade absoluta – tão enaltecida como virtude em alguns manuais de jornalismo - é um mito. Sendo o jornalismo um espelho da vida, não há neutralidade possível perante os fatos da vida, o seu fluir.
A resposta a questões inerentes a fins e técnicas do jornalismo de opinião implica, assim, uma definição prévia. Não existe – repito – jornalismo neutro. A própria opção profissional gera o comprometimento perante a sociedade. Sem compromisso – o que não implica escolha partidária – o objectivo real do jornalismo não existiria.
Essa questão é importantíssima porque não obstante o compromisso ser uma realidade inelutável, não falta quem tente negar o óbvio. Temos, portanto, duas categorias de jornalistas: os que reconhecem ser comprometidos e aqueles que, assumindo na vida uma posição que envolve também comprometimento, negam este.
O editorial
Se vocês me permitem, vou abordar um tema incómodo, o do Editorial.
Reli há dias o que sobre o assunto disse há um quarto de século, em Lisboa, num Colóquio preparatório do I Congresso dos Jornalistas Portugueses. Apesar da revolução informática, a minha posição é a mesma que então defendi.
Costuma-se dizer que o editorial deve exprimir a posição do jornal. A definição é frouxa. Um jornal deve ser um corpo vivo. Se cumpre a sua função social, os leitores identificam-se com ele como se fora um ser humano. O jornal progressista, sobretudo, tal como o concebo, sente, pensa, actua, analisa, sorri e sofre como ser colectivo.
Uma das alegrias no trabalho dos profissionais da imprensa é, num jornal comprometido com o povo, a consciência de que aqueles que o produzem têm da ponte invisível que os liga à massa dos leitores.
Daí uma primeira opção quanto ao editorial. Esse texto deve ser a palavra, o pensamento, o sentir do jornal e não a opinião pessoal de fulano ou beltrano. É mau que alguém – intelectual ou dirigente político – pretenda confundir-se com um jornal e tente fazer da sua opinião pessoal a opinião do órgão de informação que representa. O ideal, a meu ver, é um estilo editorial com tais características que o leitor relacione o texto com a personalidade do jornal, que o leitor sinta como próprios o pulsar do sangue e das ideias do seu jornal.
Sendo de execução individual, o editorial me aparece como resultante de uma ideia colectiva, de uma atmosfera, como síntese harmoniosa de estilos e pessoas diferenciadas, sem as quais não existiria aquele corpo vivo, autónomo, vocacionado para dialogar com o leitor e inspirar – lhe confiança.
O óptimo, numa redacção de gente progressista, é que três ou quatro jornalistas estejam preparados, quando necessário, para escrever o editorial, assumindo a sua personalidade, de tal maneira que o leitor não se aperceba de que muitas mãos diferentes o podem redigir.
Do que afirmei conclui-se que rejeito como aberração jornalística o editorial assinado pelo director do jornal. Tal prática, comum na Europa, ofende a ética profissional e compromete os colectivos das redacções que dela são vitimas. É natural, e até útil., que o director, se não for um burocrata, escreva, que assine os seus artigos. Mas tais textos devem expressar somente o seu pensamento, comprometendo-o, não devem confundir-se com o jornal, como totalidade.
A aberração, como vocês sabem, tornou-se rotineira em grandes jornais europeus. Por vezes o editorial é a pessoa do director, com ela se fundindo.
Situações como essa prostituem o jornalismo de opinião.
À partida, uma escolha marca logo a imagem editorial. Há jornais – refiro-me à imprensa diária – que publicam matéria editorial em muitas páginas. Por outras palavras: editorializam o noticiário.
Muitos jornais publicam vários editoriais numa página dedicada à opinião. É o caso da maioria dos grandes diários do Brasil. Outros publicam apenas um editorial, mas inserem noutras páginas textos de opinião não assinados que são também pequenos editoriais.
A opção que determina as diferentes fisionomias editoriais é inseparável da linha do jornal, ou para ser mais preciso, daquilo que ele pretende ser e do tipo de relação que ambiciona manter com os leitores.
Alguns jornais, criados para servir os interesses de poderosos grupos económicos como os das grandes cadeias estadunidenses, alemãs, britânicas e francesas – apresentam-se, por necessidade, distanciados dos seus próprios leitores.
Nos jornais progressistas – cada vez menos numerosos – a personalidade editorial resulta de um somatório de factores unidos por fios de interdependência: as opções temáticas, a unidade de estilo e linguagem, a coerência ideológica, a mundividência da história e da cultura, a firmeza na sustentação das posições defendidas, a capacidade autocrítica, o rigor informativo, a sensibilidade para a captação do fundamental, e sobretudo a solidez da ponte que liga o editorial ao jornal de que é parte.
Uma chave para o entendimento
O editorial deve exprimir, na medida do possível, o significado profundo das tensões e fenómenos sociais que assinalam, dia após dia, no fluir não transparente da História, aquilo que é determinante – por vezes em acontecimentos na aparência banais – para a transformação da vida.
Essa opção não implica que o editorial seja um texto pesado. Pelo contrário. O jornalismo de opinião progressista – sobretudo quando é o jornal quem toma posição somente cumpre o seu papel quando consegue iluminar com clareza para o leitor o lado menos visível dos acontecimentos. Por outras palavras, deve oferecer-lhe sem arrogância, numa linguagem simples, directa a chave para o entendimento de situações, de atitudes, de palavras, mudanças, perigos, crises, rupturas, enfim de tudo o que é ou pode ser fundamental na montanha de notícias que diariamente desaba nas redacções, vinda dos quatro cantos do país e do mundo.
Julgo útil chamar a atenção para dois pontos. A correcta avaliação da importância dos grandes temas é decisiva para o prestígio e qualidade de um jornal de combate. Nunca entendi a política editorial de jornais diários que durante o mês percorrem, saltitantes, trinta temas diferentes. Se o acontecimento tratado é socialmente significante nunca se esgota num só comentário jornalístico. A insistência editorial, quando forçada e sensacionalista, fatiga o leitor e contribui para a perda de credibilidade do media. Mas sempre que os fatos a justificam prende o leitor, confere ao jornal aquela imagem de ser vivo e coerente a que aludi antes. Abre-se, então, a ponte que liga o editorial ao corpo do jornal. Acho que é indispensável uma interacção que enfeixe num todo a manchete, o editorial, a reportagem, a notícia, as imagens, o artigo assinado, a pequena nota.
Um fato constante de uma notícia pode percorrer em sucessivas edições todo o sistema circulatório do jornal. Os órgãos de informação que esquecem ou subestimam as suas manchetes e os temas que comentam desvalorizam perante o leitor a sua própria opinião, levantam duvidas sobre a sua credibilidade.
Concebido como totalidade, um jornal – insisto – é um complexo sistema de vasos comunicantes no qual o principal editorial deve desempenhar uma função insubstituível.
Outro aspecto que me parece útil aflorar aqui é o que se refere à diversidade na unidade. Mesmo em jornais cuja existência é inseparável de uma clara opção ideológica, o editorial torna-se enfadonho se incidir sempre exclusivamente sobre temas da actualidade política. É transparente que no Brasil, hoje, quase tudo no movimento da vida apresenta um significado político. Mas apesar disso vejo vantagens na abertura do leque editorial.
Tudo aquilo que preocupa o corpo social e se torna para ele assunto de reflexão e debate constitui em princípio matéria susceptível de tratamento editorial. Um filme, um livro, um vilarejo como personagem, um episódio do quotidiano, uma efeméride pouco lembrada, uma palavra pronunciada nos antípodas podem ser bons temas editoriais.
A diversificação e o salto das fronteiras facilitam a passagem do particular ao geral, a compreensão do que é nosso e do que é universal. Integram mais o leitor no seu jornal.
Acredito também que é positivo alternar os textos editoriais mais densos e menos atractivos com textos em que a critica social nasce do humor.
É de todo esse caldeirão que deve resultar a personalidade humanizada de um jornal de batalha e a clareza da sua linha.
Os actos e as pessoas
Uma questão muito discutida é a da personalização da crítica. Como o homem e a mulher são sujeito da História emergem obrigatoriamente como objecto da crítica. Mas o que interessa a um jornalismo responsável são os actos e não a pessoa, a sua vida privada. Quando indivíduo, como tal, e o seu quotidiano mais íntimo aparecem sistematicamente transformados em pólo de matérias editoriais o jornalismo degrada-se, desce ao nível do colunismo mundano que se alimenta de fofocas.
A fome de actualidade, de coisas sempre novas que suscitem tensões e debates, que aumentem as tiragens, leva muitos editorialistas a erigir em motor da política o que nela é acessório ou mesmo irrelevante. Aquilo que é determinante – o comportamento das forças e classes sociais e a sua relação dialéctica com a estratégia do poder e a evolução da conjuntura económicas – é, então relegado a plano secundário. As intrigas da pequena política e as declarações dos pequenos políticos são impostos ao público nas matérias de opinião, como se dessa buliçosa e leviana movimentação e desse palavreado espumejante viesse a depender o rumo da situação geral.
A fixação do interesse é muitas vezes obtida. O público reage, discute o assunto, e este aparece transmutado em grande tema nacional. Mas a credibilidade do jornal acaba por ser afectada. Editoriais que pelo seu conteúdo especulativo desencadearam tempestades políticas perdem todo o fascínio um mês depois quando os leitores percebem que tudo neles carecia de pontes com a realidade social, configurando um processo de intervenção artificial, não ético, na conjuntura e na formação da opinião publica.
Os editoriais, reportagens e artigos com base em cenários fantasistas passaram a ser rotineiros. Um diário como o «The New York Times», imagem do «establishment», viu-se já envolvido em grandes escândalos por ter publicado reportagens de repercussão nacional cujos autores confessaram anos depois que tinham inventado os fatos que haviam provocado o êxito dos seus trabalhos.
Pessoalmente sempre recusei o jornalismo sensacionalista. Nele a especulação e os exercícios de futurologia substituem a matéria noticiosa.
Em guerras recentes ou actuais como a do Golfo, a do Afeganistão e a do Iraque a perversão mediática ultrapassou todos os limites. Os jornalistas que, mascarados de correspondentes de guerra, acompanharam as tropas norte-americanas e britânicas, e publicaram, no fundamental, aquilo que lhes transmitia o comando das forças invasoras, comportaram-se como mercenários. A degradação profissional e a falta de ética atingiram tais extremos que essas prostitutas do jornalismo, repetindo o discurso dos chefes militares, passaram a designar por «rebeldes» e «terroristas» os patriotas que se batem contra a ocupação, apresentando como «democratas» os traidores que colaboram com os exércitos invasores.
Creio ser oportuna uma referência ao peso esmagador que a opinião importada tem hoje, no Brasil, como em quase todos os países, nas colunas editoriais, no noticiário internacional e nas paginas de opinião em geral.
No tocante à informação as quatro grandes agências norte-americanas e europeias, AP, UPI, Reuters e France Presse exercem um domínio hegemónico na produção e distribuição de notícias. O controle do mercado das notícias na área da televisão intimamente ligado às Agencias citadas – não é menor. A dependência das emissoras do Terceiro Mundo da CNN e da Sky News europeia é inocultável. Hoje aumenta a dependência de dezenas de sítios web noticiosos controlados por empresas transnacionais.
O prestígio que a Al Jazeera, do Qatar, conquistou no último ano resulta precisamente do facto de aparecer como uma excepção. Ela é efectivamente uma das pouquíssimas emissoras de televisão que não se submete à pressão imperialista e consegue romper a muralha da desinformação e da mentira levantadas para ocultar a tragédia iraquiana.
O mesmo ocorre com alguns jornalistas que desde o início do ataque estadunidense ao Iraque denunciaram a escalada bélica como uma guerra de agressão motivada por ambições políticas e económicas de dominação planetária inconfessáveis. Se o australiano John Pielger e o britânico Robert Fisk são hoje dois jornalistas admirados e respeitados por milhões de leitores isso resultou de uma situação paradoxal. Não se submeteram à engrenagem. Contaram o que viram. Levaram ao mundo a verdade sobre uma das guerras mais monstruosas dos tempos modernos, concebida e desencadeada por um sistema de poder que começa a assumir contornos neofascistas é cujos crimes somente encontram precedente nos do III Reich nazi.
Companheiros e amigos
Vou terminar.
Recordando Perseu Abramo, guardo dele a lembrança do intelectual, do lutador, do jornalista para quem a fidelidade a uma concepção ética da vida foi uma exigência permanente.
Numa época como a nossa em que a humanidade enfrenta uma Crise de Civilização que ameaça a sua própria sobrevivência, identifico em exemplos como o seu um estímulo para as grandes lutas que se aproximam num panorama em que a marcha dramática da história nos empurra para a busca de uma alternativa à barbárie.
* Palestra pronunciada no Núcleo de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo. Agosto de 2004.
Subtítulos da responsabilidade da Redacção.
Em situações difíceis, inseparáveis do meu envolvimento nas lutas do povo brasileiro, Perseu manifestou-me sempre uma solidaridedade calorosa. Isso ocorreu em 1961, na crise posterior à renúncia de Jânio Quadros, quando suspendi a minha actividade no «Estado», por considerar que o apoio à Junta dos generais facciosos me colocava, como editorialista, numa posição eticamente inaceitável.
Num livro que acaba de ser lançado em Portugal evoco esse episódio, assim como outros ocorridos após o Ato Institucional n.º 5, que me confrontaram como jornalista e revolucionário com opções decisivas em defesa da dignidade. Recordo que procurei Perseu Abramo na redacção da «Folha de S. Paulo» para lhe pedir a sua assinatura num documento de solidariedade aos professores da Faculdade de Filosofia cassados pela ditadura. Ele, sereno, firmou sem hesitar, consciente do risco.
Raramente nos encontrávamos naqueles tempos difíceis. Vidas diferentes distanciaram-nos. Mas quando, ocasionalmente, surgia a oportunidade de conversarmos e procedíamos a um balanço do que ia pelo mundo e pelo Brasil convergíamos no fundamental. Perseu não seguira o rumo de muitos companheiros que, ao iniciarem carreiras académicas, tinham na prática renunciado ao combate político, substituindo-o por uma intervenção contraditória no domínio das ideias, que fazia deles cidadãos acomodados, meros simuladores de cultura. A Sociologia permitira-lhe aprofundar o conhecimento da vida, dos homens, dos povos, e, em primeiro lugar, do seu. Foi para ele um instrumento de pensamento e de acção; e não porta para conquista de cargos, nunca um fim.
A Revolução Portuguesa aumentou o nosso distanciamento. Mas do outro lado do Atlântico, de longe, acompanhei-lhe a trajectória de cidadão exemplar, de combatente pela liberdade, contra a ditadura. Do seu eticismo tinha notícias sobretudo através de Florestan Fernandes, o mais íntimo dos amigos que fiz nos meus anos brasileiros.
Somente uma vez revi Perseu, quando nos cruzamos no aeroporto de Guarulhos em 1996. Eu voltava ao Brasil após anos de ausência. Ele era então um dirigente destacado do PT. Combinamos um encontro, mas falhou.
Relembro o pormenor para sublinhar que o Perseu Abramo que as actuais gerações admiram, o dirigente politico que marcou o PT na melhor fase da sua transformação no grande partido dos trabalhadores brasileiros foi de certa maneira um desconhecido para mim, embora a imagem que dele guardo seja a do jovem companheiro do velho «Estadão» que ali aprendi a estimar pelo seu talento e pela sua defesa da ética no jornalismo e na política.
O jornalismo de opinião
Creio que ao associar o nome de Perseu a esta palestra a melhor maneira de expressar a minha admiração por ele será falar um pouco sobre o jornalismo de opinião, tal como o contemplo e sinto hoje, em convite à reflexão sobre facetas antagónicas.
Chomsky, Ramonet e o canadense Chossudovsky, em livros e artigos publicados no Brasil, têm dado uma importante contribuição para o desmascaramento da engrenagem que hoje exerce a nível mundial um controle hegemónico sobre os media.
Um punhado de transnacionais cujos interesses estão intimamente ligados ao sistema de poder dos EUA que ameaça a humanidade é responsável por uma situação paradoxal. Nunca antes a quantidade de informação disponível foi tão ampla e diversificada. Mas em época alguma a desinformação atingiu níveis tão alarmantes. A engrenagem montada utiliza a noticia, a análise, o texto de opinião com o objectivo de desinformar.
Perseu Abramo não viveu o suficiente para assistir ao agravamento do processo mundial de perversão desinformativa contra o qual lutou. A rede ampliou extraordinariamente as consequências desse fenómeno. Mas as gerações que no Brasil sofreram os anos da ditadura militar não esqueceram a atmosfera de contornos kafkianos em que os jornalistas então trabalharam.
Obviamente, o jornalismo não pode ser isolado do meio social. Terá no Brasil de ser diferente do que é na Tailândia ou no Irão. Mas não é somente a realidade envolvente que pesa decisivamente nos diferentes tipos de jornalismo.
Seja ele informativo ou de opinião, o jornalismo não é uma actividade abstracta. Numa sociedade de classes está sempre vinculado a concepções políticas e sociais. De maneira mais ou menos transparente exprime e defende os interesses de uma classe social.
A objectividade absoluta – tão enaltecida como virtude em alguns manuais de jornalismo - é um mito. Sendo o jornalismo um espelho da vida, não há neutralidade possível perante os fatos da vida, o seu fluir.
A resposta a questões inerentes a fins e técnicas do jornalismo de opinião implica, assim, uma definição prévia. Não existe – repito – jornalismo neutro. A própria opção profissional gera o comprometimento perante a sociedade. Sem compromisso – o que não implica escolha partidária – o objectivo real do jornalismo não existiria.
Essa questão é importantíssima porque não obstante o compromisso ser uma realidade inelutável, não falta quem tente negar o óbvio. Temos, portanto, duas categorias de jornalistas: os que reconhecem ser comprometidos e aqueles que, assumindo na vida uma posição que envolve também comprometimento, negam este.
O editorial
Se vocês me permitem, vou abordar um tema incómodo, o do Editorial.
Reli há dias o que sobre o assunto disse há um quarto de século, em Lisboa, num Colóquio preparatório do I Congresso dos Jornalistas Portugueses. Apesar da revolução informática, a minha posição é a mesma que então defendi.
Costuma-se dizer que o editorial deve exprimir a posição do jornal. A definição é frouxa. Um jornal deve ser um corpo vivo. Se cumpre a sua função social, os leitores identificam-se com ele como se fora um ser humano. O jornal progressista, sobretudo, tal como o concebo, sente, pensa, actua, analisa, sorri e sofre como ser colectivo.
Uma das alegrias no trabalho dos profissionais da imprensa é, num jornal comprometido com o povo, a consciência de que aqueles que o produzem têm da ponte invisível que os liga à massa dos leitores.
Daí uma primeira opção quanto ao editorial. Esse texto deve ser a palavra, o pensamento, o sentir do jornal e não a opinião pessoal de fulano ou beltrano. É mau que alguém – intelectual ou dirigente político – pretenda confundir-se com um jornal e tente fazer da sua opinião pessoal a opinião do órgão de informação que representa. O ideal, a meu ver, é um estilo editorial com tais características que o leitor relacione o texto com a personalidade do jornal, que o leitor sinta como próprios o pulsar do sangue e das ideias do seu jornal.
Sendo de execução individual, o editorial me aparece como resultante de uma ideia colectiva, de uma atmosfera, como síntese harmoniosa de estilos e pessoas diferenciadas, sem as quais não existiria aquele corpo vivo, autónomo, vocacionado para dialogar com o leitor e inspirar – lhe confiança.
O óptimo, numa redacção de gente progressista, é que três ou quatro jornalistas estejam preparados, quando necessário, para escrever o editorial, assumindo a sua personalidade, de tal maneira que o leitor não se aperceba de que muitas mãos diferentes o podem redigir.
Do que afirmei conclui-se que rejeito como aberração jornalística o editorial assinado pelo director do jornal. Tal prática, comum na Europa, ofende a ética profissional e compromete os colectivos das redacções que dela são vitimas. É natural, e até útil., que o director, se não for um burocrata, escreva, que assine os seus artigos. Mas tais textos devem expressar somente o seu pensamento, comprometendo-o, não devem confundir-se com o jornal, como totalidade.
A aberração, como vocês sabem, tornou-se rotineira em grandes jornais europeus. Por vezes o editorial é a pessoa do director, com ela se fundindo.
Situações como essa prostituem o jornalismo de opinião.
À partida, uma escolha marca logo a imagem editorial. Há jornais – refiro-me à imprensa diária – que publicam matéria editorial em muitas páginas. Por outras palavras: editorializam o noticiário.
Muitos jornais publicam vários editoriais numa página dedicada à opinião. É o caso da maioria dos grandes diários do Brasil. Outros publicam apenas um editorial, mas inserem noutras páginas textos de opinião não assinados que são também pequenos editoriais.
A opção que determina as diferentes fisionomias editoriais é inseparável da linha do jornal, ou para ser mais preciso, daquilo que ele pretende ser e do tipo de relação que ambiciona manter com os leitores.
Alguns jornais, criados para servir os interesses de poderosos grupos económicos como os das grandes cadeias estadunidenses, alemãs, britânicas e francesas – apresentam-se, por necessidade, distanciados dos seus próprios leitores.
Nos jornais progressistas – cada vez menos numerosos – a personalidade editorial resulta de um somatório de factores unidos por fios de interdependência: as opções temáticas, a unidade de estilo e linguagem, a coerência ideológica, a mundividência da história e da cultura, a firmeza na sustentação das posições defendidas, a capacidade autocrítica, o rigor informativo, a sensibilidade para a captação do fundamental, e sobretudo a solidez da ponte que liga o editorial ao jornal de que é parte.
Uma chave para o entendimento
O editorial deve exprimir, na medida do possível, o significado profundo das tensões e fenómenos sociais que assinalam, dia após dia, no fluir não transparente da História, aquilo que é determinante – por vezes em acontecimentos na aparência banais – para a transformação da vida.
Essa opção não implica que o editorial seja um texto pesado. Pelo contrário. O jornalismo de opinião progressista – sobretudo quando é o jornal quem toma posição somente cumpre o seu papel quando consegue iluminar com clareza para o leitor o lado menos visível dos acontecimentos. Por outras palavras, deve oferecer-lhe sem arrogância, numa linguagem simples, directa a chave para o entendimento de situações, de atitudes, de palavras, mudanças, perigos, crises, rupturas, enfim de tudo o que é ou pode ser fundamental na montanha de notícias que diariamente desaba nas redacções, vinda dos quatro cantos do país e do mundo.
Julgo útil chamar a atenção para dois pontos. A correcta avaliação da importância dos grandes temas é decisiva para o prestígio e qualidade de um jornal de combate. Nunca entendi a política editorial de jornais diários que durante o mês percorrem, saltitantes, trinta temas diferentes. Se o acontecimento tratado é socialmente significante nunca se esgota num só comentário jornalístico. A insistência editorial, quando forçada e sensacionalista, fatiga o leitor e contribui para a perda de credibilidade do media. Mas sempre que os fatos a justificam prende o leitor, confere ao jornal aquela imagem de ser vivo e coerente a que aludi antes. Abre-se, então, a ponte que liga o editorial ao corpo do jornal. Acho que é indispensável uma interacção que enfeixe num todo a manchete, o editorial, a reportagem, a notícia, as imagens, o artigo assinado, a pequena nota.
Um fato constante de uma notícia pode percorrer em sucessivas edições todo o sistema circulatório do jornal. Os órgãos de informação que esquecem ou subestimam as suas manchetes e os temas que comentam desvalorizam perante o leitor a sua própria opinião, levantam duvidas sobre a sua credibilidade.
Concebido como totalidade, um jornal – insisto – é um complexo sistema de vasos comunicantes no qual o principal editorial deve desempenhar uma função insubstituível.
Outro aspecto que me parece útil aflorar aqui é o que se refere à diversidade na unidade. Mesmo em jornais cuja existência é inseparável de uma clara opção ideológica, o editorial torna-se enfadonho se incidir sempre exclusivamente sobre temas da actualidade política. É transparente que no Brasil, hoje, quase tudo no movimento da vida apresenta um significado político. Mas apesar disso vejo vantagens na abertura do leque editorial.
Tudo aquilo que preocupa o corpo social e se torna para ele assunto de reflexão e debate constitui em princípio matéria susceptível de tratamento editorial. Um filme, um livro, um vilarejo como personagem, um episódio do quotidiano, uma efeméride pouco lembrada, uma palavra pronunciada nos antípodas podem ser bons temas editoriais.
A diversificação e o salto das fronteiras facilitam a passagem do particular ao geral, a compreensão do que é nosso e do que é universal. Integram mais o leitor no seu jornal.
Acredito também que é positivo alternar os textos editoriais mais densos e menos atractivos com textos em que a critica social nasce do humor.
É de todo esse caldeirão que deve resultar a personalidade humanizada de um jornal de batalha e a clareza da sua linha.
Os actos e as pessoas
Uma questão muito discutida é a da personalização da crítica. Como o homem e a mulher são sujeito da História emergem obrigatoriamente como objecto da crítica. Mas o que interessa a um jornalismo responsável são os actos e não a pessoa, a sua vida privada. Quando indivíduo, como tal, e o seu quotidiano mais íntimo aparecem sistematicamente transformados em pólo de matérias editoriais o jornalismo degrada-se, desce ao nível do colunismo mundano que se alimenta de fofocas.
A fome de actualidade, de coisas sempre novas que suscitem tensões e debates, que aumentem as tiragens, leva muitos editorialistas a erigir em motor da política o que nela é acessório ou mesmo irrelevante. Aquilo que é determinante – o comportamento das forças e classes sociais e a sua relação dialéctica com a estratégia do poder e a evolução da conjuntura económicas – é, então relegado a plano secundário. As intrigas da pequena política e as declarações dos pequenos políticos são impostos ao público nas matérias de opinião, como se dessa buliçosa e leviana movimentação e desse palavreado espumejante viesse a depender o rumo da situação geral.
A fixação do interesse é muitas vezes obtida. O público reage, discute o assunto, e este aparece transmutado em grande tema nacional. Mas a credibilidade do jornal acaba por ser afectada. Editoriais que pelo seu conteúdo especulativo desencadearam tempestades políticas perdem todo o fascínio um mês depois quando os leitores percebem que tudo neles carecia de pontes com a realidade social, configurando um processo de intervenção artificial, não ético, na conjuntura e na formação da opinião publica.
Os editoriais, reportagens e artigos com base em cenários fantasistas passaram a ser rotineiros. Um diário como o «The New York Times», imagem do «establishment», viu-se já envolvido em grandes escândalos por ter publicado reportagens de repercussão nacional cujos autores confessaram anos depois que tinham inventado os fatos que haviam provocado o êxito dos seus trabalhos.
Pessoalmente sempre recusei o jornalismo sensacionalista. Nele a especulação e os exercícios de futurologia substituem a matéria noticiosa.
Em guerras recentes ou actuais como a do Golfo, a do Afeganistão e a do Iraque a perversão mediática ultrapassou todos os limites. Os jornalistas que, mascarados de correspondentes de guerra, acompanharam as tropas norte-americanas e britânicas, e publicaram, no fundamental, aquilo que lhes transmitia o comando das forças invasoras, comportaram-se como mercenários. A degradação profissional e a falta de ética atingiram tais extremos que essas prostitutas do jornalismo, repetindo o discurso dos chefes militares, passaram a designar por «rebeldes» e «terroristas» os patriotas que se batem contra a ocupação, apresentando como «democratas» os traidores que colaboram com os exércitos invasores.
Creio ser oportuna uma referência ao peso esmagador que a opinião importada tem hoje, no Brasil, como em quase todos os países, nas colunas editoriais, no noticiário internacional e nas paginas de opinião em geral.
No tocante à informação as quatro grandes agências norte-americanas e europeias, AP, UPI, Reuters e France Presse exercem um domínio hegemónico na produção e distribuição de notícias. O controle do mercado das notícias na área da televisão intimamente ligado às Agencias citadas – não é menor. A dependência das emissoras do Terceiro Mundo da CNN e da Sky News europeia é inocultável. Hoje aumenta a dependência de dezenas de sítios web noticiosos controlados por empresas transnacionais.
O prestígio que a Al Jazeera, do Qatar, conquistou no último ano resulta precisamente do facto de aparecer como uma excepção. Ela é efectivamente uma das pouquíssimas emissoras de televisão que não se submete à pressão imperialista e consegue romper a muralha da desinformação e da mentira levantadas para ocultar a tragédia iraquiana.
O mesmo ocorre com alguns jornalistas que desde o início do ataque estadunidense ao Iraque denunciaram a escalada bélica como uma guerra de agressão motivada por ambições políticas e económicas de dominação planetária inconfessáveis. Se o australiano John Pielger e o britânico Robert Fisk são hoje dois jornalistas admirados e respeitados por milhões de leitores isso resultou de uma situação paradoxal. Não se submeteram à engrenagem. Contaram o que viram. Levaram ao mundo a verdade sobre uma das guerras mais monstruosas dos tempos modernos, concebida e desencadeada por um sistema de poder que começa a assumir contornos neofascistas é cujos crimes somente encontram precedente nos do III Reich nazi.
Companheiros e amigos
Vou terminar.
Recordando Perseu Abramo, guardo dele a lembrança do intelectual, do lutador, do jornalista para quem a fidelidade a uma concepção ética da vida foi uma exigência permanente.
Numa época como a nossa em que a humanidade enfrenta uma Crise de Civilização que ameaça a sua própria sobrevivência, identifico em exemplos como o seu um estímulo para as grandes lutas que se aproximam num panorama em que a marcha dramática da história nos empurra para a busca de uma alternativa à barbárie.
* Palestra pronunciada no Núcleo de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica de S. Paulo. Agosto de 2004.
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